Desde 2015, o Brasil permite a importação da cannabis medicinal para o uso compassivo de pacientes refratários ao tratamento convencional. Segundo a Anvisa, 7.800 brasileiros têm autorização para importá-la.
O número de pacientes, no entanto, é bem maior. Na lista da agência estão apenas aqueles com condições econômicas de custear o tratamento em dólar. Quem não pode procura o medicamento no mercado paralelo, sem segurança de qualidade, ou nas associações de pacientes.
A comissão ainda visitou o Uruguai e a Colômbia para conversar com legisladores, empresários e representantes dos governos sobre o setor da cannabis. No Brasil, a motivação da iniciativa é o atendimento a pacientes com doenças graves e crônicas que não respondem aos tratamentos convencionais, como a epilepsia e o câncer. Paralelamente a isso, existe a intenção de criar novos negócios e postos de trabalho para impulsionar a economia.
“Não estamos abrindo espaço para o mercado de drogas nem para o cultivo individual”, diz o relator do substitutivo Luciano Ducci (PSB-PR). “Todo o processo de cultivo se submete à fiscalização para um plantio seguro, sem desvios, para termos medicamento de qualidade”.
De acordo com o texto substitutivo do PL 399/2015, só empresas poderão solicitar o plantio e mediante autorização do governo e órgão competente. O projeto propõe uma lei ampla, mas simples. Não cria novos órgãos reguladores, apenas abre espaço para o cultivo, que passa a ser fiscalizado pelo Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).
À Folha os deputados Ducci e Teixeira falaram sobre o processo e a possibilidade de aprovação do substitutivo.
Qual foi o grande motor para a redação deste Projeto de Lei?
Paulo Teixeira: Tudo começou com o uso medicinal e a luta dos pacientes e familiares. Por isso nossa preocupação em desenvolver um produto de qualidade. Com a inclusão da Farmácia Viva do SUS [regularizada pela portaria 826/2010, que realiza cultivo, coleta, processamento e dispensação de produtos de plantas medicinais], ele é viável. Esse tema no Brasil se deve muito às mães e ao professor Elisaldo Carlini [da Unifesp].
O senhor acompanhou desde o início a luta destas mães?
Paulo Teixeira: Em 2014, eu e o professor Carlini fomos à Anvisa pedir a liberação da importação do Sativex, remédio para epilepsia à base de cannabis, logo depois de um congresso com as mães. Tivemos uma audiência e surgiu a RDC 017/2015, que permitia a importação do Sativex. Depois vieram os pacientes que foram à Justiça pedir o medicamento pelo SUS.
Então podemos dizer que o motor desta PL é a acessibilidade ao medicamento à base de cannabis?
Paulo Teixeira: O preço dos medicamentos disponíveis nas farmácias é muito elevado. Os dois medicamentos disponíveis no mercado nacional, o Mevatyl e o Canabidiol estão em torno de R$ 2.500 nas farmácias. Para aumentar a oferta, temos a necessidade do barateamento. Conversamos com as empresas e vimos que 95% dos insumos são importados.
Temos agora a chance de baratear a aquisição de insumos. Fizemos 14 audiências públicas e vimos muitos estudos que envolvem enfermidades diversas, mas principalmente a epilepsia refratária. A cannabis medicinal tem ajudado muito a diminuir as crises em crianças. Algumas sofrem de 40 a 50 convulsões por dia. Com a medicação, elas ganham vida, passam a comer. Quem tem dores crônicas troca os opioides pela cannabis. Os medicamentos ajudam também em doenças como fibromialgia, glaucoma, quimioterapia, entre outras. Foram essas experiências que testemunhamos durante as audiências.
Como o projeto prevê o aumento da acessibilidade?
Luciano Ducci: O medicamento será incorporado e distribuído pelo SUS por meio da Farmácia Viva. As associações de pacientes não serão prejudicadas. Elas são fundamentais no acesso democrático ao medicamento e terão de se adaptar às novas normas, mas seguindo o sistema da Farmácia Viva, que possui regras mais flexíveis que as da indústria. Além disso, os medicamentos produzidos pelas farmacêuticas nacionais devem ficar mais baratos, quando começarem a ser produzidos com insumo nacional.
O governo vai produzir o insumo para os remédios de cannabis que distribuirá pelo SUS?
Luciano Ducci: É isso mesmo. O governo não terá de comprar insumos de ninguém para isso. Ele tem a Farmácia Viva, que irá cultivar a cannabis e produzir.
Então, se aprovado o PL, a planta de cannabis passa a ser legal?
Luciano Ducci: Sim, mas para o cultivo para o uso medicinal e industrial, incluindo o setor de celulose e têxtil. O PL não trata do consumo recreativo, do autocultivo e do uso religioso ou ritualístico. Este projeto de lei regula o cultivo do insumo.
Qual é a grande mudança econômica que o plantio traz ao país?
Luciano Ducci: O Brasil poderá desenvolver uma indústria potente e entrar finalmente neste segmento. Nós já temos uma agricultura muito moderna, com tecnologia e inovação. Agora o agro ganha mais uma opção de cultivo. Este novo potencial agrícola chegará em torno de US$ 166 bilhões no mundo em cinco anos, segundo a pesquisa da consultoria Euromonitor International.
Paulo Teixeira: Conseguiremos também desenvolver pesquisa médica nas universidades.
Ficaremos na frente de outros países?
Paulo Teixeira: Não. Acho que nos igualaremos a outros da América Latina, como o Uruguai, no quesito medicinal. O Uruguai exporta cannabis medicinal e industrial para a Suíça e para Israel.
Há risco de haver desvio de finalidade de cultivo?
Luciano Ducci: Ser um empresário da cannabis medicinal ou industrial tem um custo e um trabalho que não compensaria esse desvio. Além disso, para ter uma licença de cultivo industrial ou medicinal, a empresa precisará ter uma demanda justificada e pré-contratada.
Como funciona a exportação?
Luciano Ducci: Não estamos criando novas leis de exportação, de transporte ou agrícola. O país já exporta medicamentos. A cannabis medicinal segue as leis de exportação que já existem no setor farmacêutico.
Políticos mais conservadores dizem que o Brasil não tem estrutura para garantir a segurança do armazenamento e do transporte da cannabis. O que o senhor diz disso?
Luciano Ducci: É exigida segurança no transporte e no armazenamento, mas isso fica por conta dos empresários, que não vão querer, de forma alguma, ter uma carga tão valiosa roubada.
Quais obstáculos vocês estão encontrando?
Luciano Ducci: Estamos falando com várias frentes políticas para não haver dúvidas. O projeto procura atender de forma muito especial os pacientes e criar novos negócios para o Brasil. Temos um potencial de 210 milhões de consumidores. Há empresas que estão esperando a lei para entrar no Brasil, e podemos trazer renda para o Brasil no pós-pandemia. É o caso de farmacêuticas canadenses que querem produzir no nosso território. Se o país tiver coragem para aprovar a lei, logo teremos um mercado muito bom.
Já conversaram com o deputado Osmar Terra (MDB-RS), da ala mais resistente?
Paulo Teixeira: Não, desde o início ele se mostrou sem condições de diálogo.
Raio-X
O deputado Luciano Ducci (PSB-PR), 65, é pediatra. Foi prefeito de Curitiba de 2010 a 2012 e escolhido para ser o relator do substitutivo do Projeto de Lei 399/2015, que trata do cultivo de cannabis, na Comissão Especial da Câmara.
O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), 59, está no cargo desde 2007. Acompanhou a questão da cannabis medicinal desde 2014 e foi indicado por Rodrigo Maia, presidente da Câmara, para ser o presidente da Comissão Especial da Cannabis. Formou-se em direito e é advogado.
Entenda o PL da Cannabis (399/2015)
Objetivo
Regulamentar as atividades de cultivo, processamento, armazenagem, transporte, pesquisa, produção, industrialização, comercialização, exportação e importação de produtos à base de cannabis para fim medicinal e industrial. O projeto não trata de autocultivo, nem do uso recreativo, religioso e ritualístico.
Quem poderá cultivar
- Pessoa jurídica mediante a prévia autorização do poder publico. Não é possível plantar por conta própria.
- Governo através das Farmácias Vivas do SUS.
- Associações de pacientes legalmente constituídas, com adaptação às boas práticas das Farmácias Vivas do SUS, que possuem regras mais simples que a da indústria. As associações terão um ano para se adaptar.
Obrigações
O produtor de cannabis medicinal é obrigado a solicitar uma cota de cultivo ao poder público que atenda demanda pré-contratada ou com finalidade pré-determinada, as quais devem constar no requerimento de autorização do cultivo. A empresa deve fornecer o número de plantas a serem cultivadas, detalhando quantas são psicoativas e quantas não são.
- O produtor de cânhamo é obrigado a fornecer a área de plantio e só pode produzir plantas não psicoativas.
- O cultivo de cannabis deve seguir a lei brasileira de sementes nº 10.711/200.
- Rastreabilidade de toda a produção, da semente ao descarte.
- Apresentação de plano de segurança de cultivo e do local de produção.
- Ter responsável técnico legal.
- Cultivo em estufas protegido com dispositivos de segurança.
- O projeto prevê o plantio extensivo, ou seja, aberto para o cânhamo industrial.
Finalidade do cultivo de cannabis medicinal
- Produtos regulamentados pela RDV 327/2019 da Anvisa.
- Produtos veterinários.
Finalidade do cultivo do cânhamo industrial
Industrial: têxtil, produtos de construção, cosméticos e outros.
Condições da cannabis medicinal
- Plantas de cannabis com mais de 1% de THC são consideradas psicoativas.
- Plantas de cannabis com menos de 1% de THC são consideradas não psicoativas.
- Para fins de uso veterinário só é permitido o uso da cannabis não psicoativa.
- Os medicamentos à base de cannabis de uso humano são considerados psicoativos se tiverem mais de 0,3% de THC.
- O medicamento com teor de THC abaixo de 0,3% é não psicoativo.
- O medicamento veterinário tem de ter menos de 0,3% de THC.
- Prescrição por profissionais autorizados e receituário de acordo com a RDC 327/19 da Anvisa.
- Os medicamentos à base de cannabis para uso humano são regulados e autorizados pela Anvisa e para uso veterinário são regulados pelo Ministério da Agricultura.
- Os requisitos para concessão das cotas são estabelecidos pelo poder público. Os requisitos que trata esta lei não isenta o atendimento específico de regulamentação exigida pelo poder público mediante regulamento. Por exemplo, a Anvisa diz hoje que canabidiol (CBD) tem de ter receita azul, mas isso o governo pode mudar.
- As Farmácias Vivas do SUS devem seguir todas as obrigações deste projeto de lei.
- Farmácias magistrais podem manipular com autorização especial da Anvisa.
- As associações de pacientes ficam autorizadas a produzir produtos magistrais ou fitoterápicos, após a adequação às normas desta Lei.
Pesquisa
Segue a mesma lei do cultivo para cannabis.
Exportação e importação
De pessoa jurídica para pessoa jurídica. A exportação será para fins medicinais e industriais. Todas as partes das plantas podem ser exportadas, inclusive as flores, como já acontece em outros países como Canadá e Uruguai.
SUS poderá incorporar e distribuir os medicamentos de cannabis medicinal à população.
O que muda no projeto para o cânhamo industrial
- A finalidade não é medicinal, mas, sim, industrial.
- A lei vai autorizar a produção e a comercialização com base nas legislações infralegais correspondentes aos respectivos controles sanitários, de segurança de registro e regulatório. A produção de cosméticos, por exemplo, tem de seguir a regulação que seguem os demais produtos que não possuem cânhamo.
- Só pode ser usado pela indústria alimentícia se tiver 0% de THC.
- Para outros fins industriais, o produto deve apresentar sempre teor menor de 0,3% de THC.